sábado, 24 de novembro de 2007

O INCIDENTE DO DESTINO...

Quinze dias passados da minha estadia em Cabo Verde, pelas cinco horas da tarde, havia eu e o Enf.º Ricardo regressado da labuta das consultas, quando me recordei do sonho que tinha tido na véspera. A minha colega Susana tinha o braço esquerdo partido e olhava para mim, muito séria, sentada.
O facto de o ter recordado ali, enquanto esperava com o Ricardo que eles também regressassem para almoçarmos, acalmou a fome que eu sentia e preencheu-me com uma estranha sensação de ansiedade. Quando eles, após uma hora, tendo ido de mota, ainda não haviam chegado, foi a vez da angustia desaparecer e dar lugar a uma adrenalina pura.

Alguém que não recordo, apareceu e falou. Eles haviam tido um acidente. A Susana estava desmaiada. Pelas estradas de pavimento de paralelo, com buracos metro-sim, metro-não, animais, crianças, lixo e graúdos... três galinhas cruzaram o caminho deles!

Foi um sufoco. Corremos para o hospital. Respirando fundo - para não piorar as diferenças de percepção do tipo de actuação nestes casos - após eternos 20 minutos conseguimos que a ambulância da ilha nos fosse dispensada e um motorista aceitasse ir connosco.

Saltando a parte da condução lenta, de ficarmos parados por vários minutos na estrada por pessoas estarem a conversar no meio desta sem o menor interesse de ser uma AMBULÂNCIA a querer passar ou um borrego (penso que o borrego até daria mais nas vistas:), e de não haver material e equipamentos básicos no veículo...


Lá alcançámos chegar ao local do acidente. O Enf.º Paulo estava com a cabeça envolta em sangue e rasgos enormes na face. A Susana estava sentada no chão, com um olhar sem alma. Pelo menos já não se encontrava desmaiada - pensei eu! E voltou-se para mim ao som da minha voz. Mais tarde, revelou-me não se lembrar de nada. Acredito, pois ela não estava lá. (E quem sabe se não é mesmo melhor assim - não recordar! Há coisas que machucam tanto!)

Agarrou-se a mim durante o caminho todo de volta ao hospital. Colocava os seus olhos nos meus e perguntava "onde estamos?". Eu repondia-lhe suscintamente. Ela voltava-se de novo para o vazio, permanecia em silêncio por alguns segundos e depois, fixava-me novamente - com a mesma pergunta no ar...

Ver aquele corpo ali, móvel e funcionante, mas sem vida - é algo difícil de descrever! Estar sem Ser, sem Existir...

Já a noite banhava os ceús quando entrámos no serviço de urgência. O Paulo foi logo colocado na única maca existente para que o seu rosto fosse suturado. A Susana, deitada no chão, foi puncionada e iniciou Dextrose.

Se a mensagem fosse a falta de acesso à saúde eu poderia aqui descrever como o único exame possível de ser feito era um Raio-X por um "radiologista" com diminuição acentuadíssima da acuidade visual que há quinta vez e quando eu lhe pedi/ menti que esquecesse a clavícula pois queriamos desta vez era ver o pescoço, lá conseguiu concluir a obra; ou então descreveria como os lençois e a comida tem de ser levada por familiares porque o hospital não tem recursos para o garantir; ou então, porque não falar de termos de ter ido buscar medicamentos a casa para lhes administrarmos...

Isto, se ainda não o sabiam, desconfiavam, e se não desconfiavam, certamente não o irão esquecer... prefiro falar-vos de algo que até podem saber e desconfiar, mas do qual nos esquecemos amiúde no nosso dia-a-dia - a generosidade das gentes!

Pessoas sem dinheiro, sem condições básicas de saúde, educação, habitação, etc., foram aparecendo. Trouxeram comida para eles e para nós que ali estavamos com eles, só nos ausentando para num pulinho ir a casa buscar algo ou telefonar para a Seguradora em Portugal para agilizar a vinda do avião, visto que a situação da Susana (clavícula esquerda partida com vértices embicados para o pulmão, traumatismo craneo-encefálico) assim o exigia. Trouxeram lençóis. Deixaram que fosse eu a administrar-lhe terapêutica. Perguntavam uns aos outros como estavam eles. Enviavam palavras de força e boa-sorte.
Aqueles que passam por isto toda a vida a dar força a quem perece somente por 2 dias e para quem más condições de saúde são ter de esperar 1 mês por uma consulta não-urgente e ter de esperar 30 minutos pela enfermeira e/ ou pelo médico.

"As pessoas mais felizes parecem ser aquelas que não têm uma razão específica para serem felizes a não ser o facto de o serem."
W.R. Inge



PS: A partir desse dia, independentemente do calor ou da distância, o Ricardo nunca mais me deixou andar de mota sem o seu SUPER-HIPER-MEGA blusão de protecção todo almofadado e com todo o tipo de suporte e apoios :)

2 comentários:

  1. O teu livro está lindo ... mesmo!. A Cris ficou também muito sensibilizada com a tua escrita e com as imagens! És uma artista. Estou muito feliz por ti! Nunca pares de escrever...

    Eu não gosto muito de blogs, mas tenho lido sempre o teu, está muito bem escrito e ajuda a refrescar a memória dos tempos que lá passamos. Já fez ontem 2 anos que eu fui para Cabo-Verde.

    Agora manda-me o nib e a "conta" para eu fazer a transferência!

    Um abraço

    Miguel

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  2. olá anita, como tás?

    espero k bem!
    toda cheia de novos projectos e sonhos realizados,hum! muito bem, gostei de ver!
    bem espero k não leves em conta o meu estilo literário, ou falta dele, mas é uma grande pressão escrever algo a ti, uma notável escritora!!

    sério k fiquei muito feliz por teres realizado este teu sonho!
    já tenho saudades tuas, a vidinha em beja, tá tudo?

    depois combinamos, porque gostaria muito de ter uma cópia do teu livro e autografado claro (um dia pode valer uma fortuna!!!).

    olha aproveito também para te dar os parabéns por causa do blog...mas infelizmente tens lá uma incorrecção: a agostinha chama-se "Maria Josefa de Pina".

    desculpa este reparo, mas não podia deixar de o fazer!

    beijos enormes! un sta mandabu um abraço na vento!

    Ricardo

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